quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Cesar Benjamin escreve sobre Frei Luis e Rio São Francisco

Entre 1992 e 1993, durante um ano, quatro pessoas realizaram anonimamente uma caminhada de 2.700 quilômetros, das nascentes à foz do Rio São Francisco. Começaram assim uma longa luta, que dura até hoje, pela vida do rio e das populações sertanejas que dele dependem.

O líder dos peregrinos era um frade franciscano, o mais franciscano de todos os franciscanos que conheci, Luís Cappio. É um homem raro. Vive visceralmente o cristianismo, a sua missão. Hoje, é bispo da Diocese de Barra (BA). Continuou o mesmo simples peregrino, um irmão da humanidade, um pobre vivendo entre os pobres.

O presidente Lula acusa frei Luís, contrário à transposição das águas do Rio São Francisco, de não se importar com a sede dos nordestinos. Para quem conhece os dois personagens, é patético. Um abismo moral os separa.

Desse abismo nascem as suas diferentes propostas. O Semi-Árido Brasileiro é imenso: 912 mil km2. É populoso: 22 milhões de pessoas no meio rural. É o mais chuvoso do planeta: 750 mm/ano, em média, o que corresponde a 760 bilhões de metros cúbicos de chuvas por ano. Não é verdade, pois, que falte água ali. A natureza a fornece, mas ela é desperdiçada: as águas evaporam rapidamente, sob o sol forte, ou vão logo embora, escorrendo ligeiras sobre o solo cristalino impermeável.

Há décadas o Estado investe em obras grandes e caras, que concentram água e, com ela, concentram poder. O presidente Lula quer fazer mais do mesmo. No mundo das promessas e do espetáculo onde vive, a transposição matará a sede do sertanejo. No mundo real, apenas 4% da água transposta será destinada ao consumo humano. 'É a última grande obra da indústria da seca e a primeira grande obra do hidronegócio. Uma falsa solução para um falso problema', diz Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da Terra.

Nos últimos anos, o Semi-Árido experimenta uma lenta revolução cultural. Centenas de organizações sociais, apoiadas pela Igreja Católica e por outras igrejas, adotaram o conceito de convivência com a natureza e desenvolveram in loco cerca de 40 técnicas inteligentes, baratas e eficientes para armazenar a água da chuva. Ela é suficiente - corresponde a quase 800 vezes o volume d'água da transposição -, mas cai concentrada num curto período do ano.

Essas organizações lutam por duas metas principais: '1 milhão de cisternas' e 'uma terra e duas águas'. Combinados, os dois projetos visam a proporcionar a cada família uma área de terra suficiente, uma fonte permanente de água para abastecimento humano e uma segunda fonte para a produção agropecuária.

As experiências já realizadas deram resultados magníficos. Para oferecer isso à população sertaneja é preciso realizar a reforma agrária e construir uma malha de aproximadamente 6,6 milhões de pequenas obras: duas cisternas no pé das casas, para consumo humano, uma usual e outra de segurança; mais 2,2 milhões de recipientes para reter água de uso agropecuário. No conjunto, é uma obra gigantesca, mas desconcentrada.

Poderia ser um projeto emancipador das populações sertanejas, se tivesse um apoio decidido do governo federal. A proposta tem respaldo técnico da Agência Nacional de Águas (ANA), que realizou um minucioso diagnóstico hídrico de 1.356 municípios nordestinos, abrangendo um universo de 44 milhões de pessoas, pois inclui os centros urbanos. As obras propostas pela ANA, pelas igrejas e pelas entidades da sociedade civil resolvem a questão da segurança hídrica das populações. Estão orçadas em R$ 3,6 bilhões, a metade do custo inicial da transposição do São Francisco.

Isso não interessa aos donos das grandes monoculturas irrigadas, devoradoras de água, produtoras de frutas para exportação e de cana para fabricar etanol. É a eles e a alguns grupos industriais que a transposição se destina. Ao sertanejo, cada vez mais, oferecem a opção de se tornar bóia-fria.

mais detalhes em http://www.ivanvalente.com.br/CN02/artigos/arts_07_det.asp?id=698

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