Por Plínio de Arruda Sampaio
Artigo publicado na Folha de S. Paulo de sábado (4/12) numa polêmica com a direita sobre a atualidade da Reforma Agrária
REFORMA-SE algo que não está funcionando a contento. Altera-se então a forma de alguma coisa, sem alterar sua substância. Por isso mesmo, uma mesma coisa pode ser reformada várias vezes. Com a estrutura agrária acontece exatamente o mesmo. Todas as vezes em que ela emperra a realização do projeto de algum grupo social importante, esse grupo propõe uma reforma agrária.
Na época moderna, o motivo principal das reformas agrárias foi a rigidez da estrutura agrária herdada da Idade Média porque impedia o pleno funcionamento do mercado capitalista e das instituições capitalistas no campo. De modo geral, essas reformas agrárias foram distributivistas -promoviam a desapropriação de grandes latifúndios e seu parcelamento em lotes familiares.
Nos anos 50 do século passado foi esse tipo de reforma agrária que entrou na agenda política do país, proposta apresentada pelas demais forças progressistas, racionalizada pela Cepal, sob o argumento do atraso do setor agrícola e dos seus efeitos no processo inflacionário, e incorporada pelos governos que “compraram” a ideia do presidente Kennedy, o qual viu a possibilidade de evitar a propagação da Revolução Cubana num processo moderado de distribuição das terras dos latifúndios latino-americanos.
A proposta de reforma agrária deu ensejo a um intenso debate teórico em torno do problema da terra. O golpe de 1964 encerrou o debate, o qual só foi reaberto 20 anos depois, agora sustentado por novas organizações populares e novos partidos de esquerda. Muitos intelectuais -inclusive os que hoje a renegam- encarregaram-se de justificá-la teoricamente.
Não se tratava mais da reforma de 1964, porque os militares, nos seus 20 anos de governo, haviam realizado a modernização do campo sem distribuição massiva de terra, porém a um preço social e ecológico altíssimo. Tratava-se de corrigir essas distorções. Portanto, tratava-se agora de reforma agrária social, destinada a humanizar o capitalismo agrícola e a preservar o meio ambiente.
Hoje o governo Lula praticamente enterrou esse tipo de reforma agrária. Por isso os movimentos populares foram levados a radicalizar sua pressão sobre a terra. Além das ocupações, promoveram marchas, fechamento de estradas, danificação de pedágios e, ultimamente, danificação de instalações e plantações de propriedade de grandes agronegócios. Em uma sociedade anestesiada, incapaz de sensibilizar-se por argumentos racionais, que se move unicamente pressionada por gestos ostensivos, tais atitudes se justificam pelo estado de necessidade, pois não há outra forma de chamar a atenção para o descaso criminoso do governo com a população rural.
Qual a leitura a ser feita então a respeito de fatos como a derrubada de laranjais da fazenda Cutrale; a danificação das mudas de transgênicos na Syngenta; a ocupação dos latifúndios do banqueiro Dantas no Pará?
Esses e outros gestos publicitários visam bloquear um processo de reforma agrária atualmente em plena marcha e, ao mesmo tempo, propor um projeto alternativo de reforma. O processo de reforma a ser bloqueado está sendo executado aceleradamente.
Origina-se na contrarrevolução neoliberal dos anos 90 e na nova divisão internacional do trabalho que dela decorreu.
Essa nova divisão alterou o lugar da economia brasileira no mercado capitalista internacional e isto está a exigir a transformação rápida da sua atual estrutura agrária, a fim de que os grandes agronegócios internacionais montem uma formidável economia exportadora de quatro produtos altamente demandados pelas economias que lideram a nova fase do capitalismo -soja, álcool de cana de açúcar, carne e madeiras.
O grande capital internacional assumiu por conta própria a realização dessa reforma e a está implementando, mediante a compra de terras e de empresas agrícolas, de que é exemplo a compra da Usina Santa Elisa pelo grupo Dreiffyus.
Por ação e por omissão, o governo Lula apoia entusiasticamente essa nova reforma agrária. Por omissão, quando paralisa o raquítico programa de assentamentos da “reforma agrária social”; por ação: quando edita leis que permitem legalizar 67 milhões de hectares de terras griladas na Amazônia, a fim de que os grileiros (convertidos em proprietários legais) as vendam aos grandes agronegócios para produção de soja e para criação de gado nessas terras; quando realiza pesados investimentos na transposição das águas do rio São Francisco, a fim de criar uma economia exportadora de frutas tropicais, comandada pelos grandes agronegócios e destinada a países do hemisfério norte; quando prorroga a entrada em vigor de leis que protegem as florestas.
Requisito indispensável para o êxito dessa reforma agrária dos ricos é calar os movimentos sociais do campo, especialmente aquele que, aqui e no exterior, simboliza a luta da população pobre pela terra: o MST. O capital transnacional não vai aonde pode correr riscos.
O serviço que os intelectuais hoje dedicados a desmoralizar o MST prestam a essa nova reforma agrária consiste em fornecer argumentos pseudamente racionais para justificar a criminalização desse movimento.
A outra reforma agrária -a dos movimentos autênticos do campo e das forças sociais progressistas- visa contrarrestar a reforma concentradora dos agronegócios e atender às necessidades de 6 milhões de famílias pobres do campo. Trata-se de consolidar a agricultura familiar -que responde tanto pela maior porcentagem da produção de alimentos quanto da oferta de empregos no campo e de desapropriar todos os imóveis de tamanho superior a 1.000 hectares, a fim de redistribuir essas terras à população rural sem terra.
O MST e a CPT (órgão da CNBB) levantaram essa bandeira, cabendo às forças progressistas que ainda restam na nação empunhá-la e levá-la adiante.
A estrutura agrária que se formará nesse processo criará a base material requerida para viabilizar um rigoroso processo de zoneamento agroecológico da produção e um programa de descentralização do abastecimento alimentar da população. A prioridade que deverá ser dada a esses objetivos não é incompatível com o aproveitamento da demanda externa pelas “commodities” agrícolas porque o país possui uma enorme quantidade de terras.
Os desertores da reforma agrária, que hoje se ocupam de intrigar a opinião pública contra o MST, não conseguem separar o fato social do movimento político: o MST é um movimento político socialista que, diante do fato social representado pelo conflito fundiário, organiza a luta de uma das partes do conflito -a população rural sem terra- do mesmíssimo modo que a CNA; a bancada ruralista; os partidos da direita; a grande mídia (com matérias escandalosamente facciosas); e os intelectuais a serviço desses interesses organizam a luta da outra parte no conflito: o agronegócio.
Para que o debate sobre as duas reformas agrárias seja racional, é preciso pôr de lado a impostura da imparcialidade.
Este analista toma partido -está do lado dos sem-terra- e é deste ponto de vista que interpreta racionalmente a realidade do campo. Quem diz não estar de lado nenhum, mas do lado do Brasil, não está dizendo a verdade: o Brasil não tem lado no conflito agrário, porque é impossível realizar uma reforma que atenda ao mesmo tempo quem quer a concentração e quem quer a desconcentração da propriedade rural.
Contudo há uma crítica a ser feita à ocupação da fazenda da Cutrale. Segundo a empresa, os ocupantes destruíram 7.000 pés de laranja. Erraram: deviam ter destruído 70 mil (o que nem seria muito notado numa fazenda de 1 milhão de pés) a fim de chamar mais a atenção para o fato de que essa fazenda ocupa ilegalmente terras públicas com a conivência do Poder Judiciário.
Muito mais do que 70 mil são as vidas de crianças estão sendo destruídas pelo desemprego agrícola; pelos salários escandalosamente baixos dos trabalhadores rurais; pela precariedade das habitações rurais -fonte de doenças que destroem vidas.
O MST está certíssimo na sua tática de luta. Só lhe falta proclamar com maior vigor e clareza a cumplicidade de Lula na reforma agrária do agronegócio e cobrar mais apoio dos partidos de esquerda, das igrejas, da universidade, dos ecologistas (que precisam sair de cima do muro e assumir a luta camponesa), bem como exigir do Poder Judiciário e do Ministério Público, cujos juízes e promotores permitem o protelamento indefinido ações de desapropriação e não fiscalizam as violências policiais cometidas contra os lavradores nas reintegrações de posse, o cumprimento de suas obrigações.
O MST deve cobrar: a população rural é credora e não devedora.
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, 79, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e ex-consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Foi deputado federal constituinte pelo PT-SP e candidato a governador de São Paulo pelo mesmo partido em 1990. Em 2005, filiou-se ao PSOL, partido pelo qual concorreu ao governo de São Paulo em 2006.
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